Edelmira estava exausta de tanto chorar. Acompanhar o velório coletivo do pai, mãe, avô, avó, outra avó, irmão, irmã, marido, sogro, sogra, cunhados, três tios, onze primos e mais sete agregados da família não foi fácil. Vítimas do coronavírus, “a gripezinha”, como todos, inclusive ela, zombavam durante o fatídico churrascão do campeonato anual de cuspe em altura dos Barbosa.
Barbosas que, nas semanas seguintes, foram adoecendo e morrendo.
Edelmira foi a única sobrevivente.
Agora, estava de volta à casa dos pais, completamente vazia, pois até o cachorro morreu ao ser atropelado enquanto corria atrás da ambulância levando seis Barbosas. Se jogou no sofá e, com o pouco de força que ainda tinha, ligou a televisão. Começava um pronunciamento oficial do presidente da república:
— Boa noite. Como vocês sabem, a mídia mentirosa fica alardeando essa gripezinha ridícula só pra me atacar pessoalmente, a mim única e exclusivamente! Tem até repórter canalha pedindo impeachment, sendo que não cometi nenhum crime! Esse povo fracote que morreu pra gripezinha comunista? Não é culpa minha, tá oquei? E, pra provar que ela é uma gripezinha mentirosa, eu contraí ela agora de manhã e já sarei, graças à cloroquina. — Um assessor aparece ao seu lado e exibe um frasco do remédio para a câmera. — Mas a mídia canalha comunista mentirosa continua duvidando de mim, só de mim, única e exclusivamente, então vim provar a todos que estou curado e a cloroquina funciona.
O presidente então lambe o próprio dedo e enfia-o com força no nariz do assessor, que tenta ficar impassível, mas seu desconforto é aparente. Após girá-lo por mais de um minuto, o presidente tira e limpa o dedo no terno do assessor, abre o frasco, vira um punhado de cápsulas na mão e força elas na boca do outro, segurando o nariz dele para obrigá-lo a engolir tudo.
— Você está bem?
— Estou… ótimo… senhor presidente… obrigado. — O assessor respondeu, saindo para o lado. Ele morreu poucas horas depois, mas como foi determinado que foi devido a causas pré-existentes, não foi aberta uma investigação.
— Viu só? Cloroquina funciona, tá oquei? Quem acredita nessa gripezinha comunista ridícula canalha mentirosa comunista é um traidor!
O ódio que Edelmira sentiu ao ouvir essas palavras foi revigorante. Ergueu-se, apontou o controle remoto para a televisão e declarou para o mundo, num tom contido, mas determinado:
— O traidor é você, desgraçado.
Pomposamente desligou o aparelho, tremendo de raiva, como se uma câmera desse um close no seu rosto antes da chamada para os comerciais.
No dia seguinte, ainda alimentada pela fúria, foi até o shopping, onde, após provar que era uma pessoa sã e capaz ao tirar a máscara facial e beijar uma bíblia, pôde comprar uma magnum. Voltou para casa e chamou um entregador de aplicativo, que chegou quatro minutos atrasado e ainda teve a audácia de reclamar do peso da caixa onde Edelmira se escondia, e por isso não ia ganhar uma gorjeta, onde já se viu?
Após sessenta e oito horas de pedaladas, o entregador deixou a caixa “perto da estátua esquisita com os etês segurando lanças” na praça dos três poderes, em Brasília, e se foi, feliz pelos onze reais que ganhou com a entrega.
Fedendo a suor, urina e açaí, Edelmira saiu da caixa e se viu cercada por uma multidão de dezoito pessoas, eram manifestantes pedindo a volta da escravidão e da poliomielite. Como vestia a camiseta da seleção que ganhou de brinde na loja de armas de fogo, facilmente se misturou a eles. Foi quando começaram a aplaudir, era o presidente chegando para prestigiar o evento.
Edelmira sacou sua arma, aproveitando que muitos faziam o mesmo para atirar pra cima ou no boneco de um indígena tremendamente realista que alguém havia amarrado a um tronco no meio da praça, doação da indústria pecuária. Avançou pela multidão, chegando cada vez mais perto, focada na sua missão, determinada em sua vingança. Encontrou o presidente enfiando o dedo babado no nariz de um homem, ato que virou um ritual de batismo entre seus seguidores. Por sorte, estavam concentrados em fazer pose para as câmeras, ninguém percebeu ela se posicionando alguns metros atrás dele.
Ela ergueu o revólver, pesado, se esforçando para equilibrá-lo. Mirou na nuca dele. Inspirou com calma. Soltou o ar e apertou o gatilho.
Infelizmente, o coice do tiro foi mais forte que esperava e a bala não foi aonde mirou, voando mais para baixo, entrando pela calça do presidente e explodindo para fora da sua braguilha. Sangue jorrou para todo lado, pequenos órgãos ovais quicaram e rolaram pelo chão, e um pedaço de carne com um formato similar ao de um cogumelo, não tão grande (abaixo da média, até), acertou em cheio a lente de uma câmera, revelando ao vivo o excelentíssimo para todo o Brasil, morto.
No dia seguinte, lia-se em todos os jornais do país: “Impeachment aprovado em um dia.”
Afinal de contas, onde já se viu um presidente sem um pinto?
Espero que tenham gostado deste conto!
Escrevi-o em julho de 2020 para um concurso com o tema pandemia/coronavírus, um dos muitos que participei. Infelizmente, ele não foi selecionado, e fiquei bem chateado na época, pois achei que tinha sido um dos melhores que escrevi sobre o tema.
Seis meses depois, quando decidi publicá-lo aqui, dei uma relida e entendi porque ele não foi escolhido, a versão original tentava contar histórias e piadas demais, estava confuso, sem foco. Esta versão que você acabou de ler (você leu, certo?) é a 2.0, por se assim dizer, em que foquei a história na Edelmira e tentei deixá-la mais dinâmica.
Enfim, obrigado por ter lido o conto! Deixe seu comentário aqui, estou sempre aberto a opiniões para melhorar minha escrita.