— Mãe, voltei! — Exclamou Camila, ao voltar pra pizzaria.
Aos dezessete, Camila sempre foi baixinha e magricela, mas ninguém diria que possui uma aparência frágil. Seus longos e vastos cabelos encaracolados, que cultivou com orgulho desde criança, revelavam muito sobre sua determinação, principalmente quando pensamos no trabalho que dá cuidar de tamanha cabeleira. Mesmo amassados dentro do capacete de bicicleta vermelho, as mechas que esvoaçavam para fora eram impressionantes.
Andou até o balcão e perguntou:
— A pizza da dona Marlene tá pronta?
— Ela não pediu hoje! — Berrou Sônia, sua mãe, da cozinha.
Camila estranhou a resposta. Pegou o celular pra conferir e era mesmo terça-feira, dia que a dona Marlene sempre pedia pizza.
— Pois é, menina, não sei o que aconteceu. — Disse a mãe, vindo do fundo. — Pior que até tinha deixado pronta pra assar, mas se ela não ligou até agora, deve ter jantado outra coisa.
— Como o quê?
— Sei lá, arroz com feijão? Macarronada? Nem todo mundo vive de pizza que nem você, menina! — Deu um tapinha brincalhão no capacete de Camila. — Aproveita que não tem mais pedido e vai estudar, você tem vestibular este ano!
— Tá, já vou… — Disse Camila, quando viu o jornal terminando na TV. Pensou na dona Marlene, com mais de oitenta anos, morando sozinha, e bateu uma preocupação estranha. Foi quando tomou uma decisão.
— Mãe, quanto tempo demora pra assar a pizza dela? Quinze minutos?
— Pra menos, por quê? — Desconfiou a mãe.
— Assa pra mim.
— Vai fazer o quê? Comer?
Camila pensou no sabor que a dona Marlene sempre pedia, atum, e o cheiro de chulé que empesteava a mochila toda terça. Sentiu um pouco de ânsia.
— Sim, tô morrendo de fome hoje. — Mentiu.
— De pizza de atum — respondeu a mãe, sem acreditar.
— Sim, delícia. — Camila mentiu ainda mais intensamente.
As duas se encararam e a mãe percebeu que a filha não ia mudar de idéia. Soltou um longo suspiro e voltou para a cozinha.
— Tá, o forno tá parado, ia jogar fora mesmo, vou assar rapidinho.
— Brigado, mãe, te amo!
— Mas se ela já tiver jantado, você vai comer essa pizza inteira!
Após treze minutos e vinte e seis segundos, a pizza foi colocada na caixa, a caixa na mochila, a mochila nas costas de Camila, a Camila na bicicleta e, em menos de sete minutos, ela estava no prédio da dona Marlene. Um edifício antigo, de apenas seis andares e sem porteiro, mas que Camila conhecia bem pois praticamente todos os moradores eram clientes da pizzaria.
Apertou o número 32 no interfone e esperou, ansiosa. O tempo passou, sem resposta. Sentiu o coração bater mais rápido, e apertou o botão mais uma vez, nada. Ia apertar de novo, quando…
— Boa noite, Camila, tudo bem?
Ela quase caiu no chão com o susto.
— Ah! Seu Benjamim! Boa noite! — Cumprimentou, ao se recuperar.
— Nossa, menina, que susto foi esse?
— Desculpa, seu Benjamim, é que eu chamei a dona Marlene, mas ela ainda não respondeu — ela explicou, apontando para o interfone.
— Ah, tá, ela não ouviu?
— Pode ser, acontece às vezes.
— Então, eu entrego! Qualquer coisa, deixo na porta dela.
A jovem hesitou, e o homem percebeu.
— Não preocupa, sou gordo, mas não vou comer a pizza dela! — Ele exclamou, rindo e batendo na própria barriga.
— Não, seu Benjamim, não é isso. — Respondeu Camila, com um sorriso amarelo. Não queria falar sobre a pizza não ter sido solicitada, mas decidiu ser sincera sobre sua real motivação: — A verdade é que eu tô preocupada com ela, sabe? Quero ter certeza que ela tá bem.
O homem a encarou e percebeu que Camila não ia mudar de idéia.
— Eu abro pra você, então. — Disse o seu Benjamim, tirando a chave do bolso. — Sobe lá, a campainha ela vai ouvir!
— Obrigada, seu Benjamim! — Agradeceu Camila, feliz pela ajuda.
Ao chegar no terceiro andar, Camila olhou para a porta no final do corredor e sentiu medo. Virou-se para pedir ajuda ao seu Benjamim, mas o elevador já tinha ido embora. Dona Marlene era a única moradora do andar, não tinha mais ninguém ali perto. Se alguma coisa aconteceu com a senhora, era Camila quem ia ter que socorrê-la. O silêncio a oprimia. O vento frio a arrepiava. As batidas do coração ecoavam na sua cabeça.
Mas Camila realmente queria ver a dona Marlene. Com um grande esforço, deu o primeiro passo, o segundo, e cada um era mais fácil que o anterior. Quando finalmente chegou à porta, se sentia melhor, pronta para o que quer que acontecesse. Respirou fundo e apertou a campainha.
Para seu grande alívio, ouviu um barulho vindo de dentro.
“Ela tá bem!” — Pensou, sorrindo e sentindo algumas lágrimas de formando. Mais calma, preparou para entregar a pizza, com a mochila à sua frente e a mão no zíper.
A porta, porém, não se abriu. Nenhum outro som veio do apartamento. O alívio de Camila começou a sumir. Será que tinha imaginado aquele barulho? Apertou a campainha mais uma vez. Chamou a dona Marlene. Bateu na porta. Assobiou. Ia apertar a campainha de novo quando a porta finalmente abriu!
Mas, de tudo que estava pronta para enfrentar, o estranho homem barbudo que apareceu não estava na lista.
— Que foi? — Ele sussurrou, irritado, e fechando a porta atrás de si. Não era particularmente alto ou grande, mas perante a miúda entregadora, era uma figura intimidadora.
— Ah, boa noite, senhor! — Cumprimentou Camila, tentando se acalmar do novo susto. — Pizza pra dona Marlene!
— Não pedi… não pedimos nenhuma pizza.
Alguma coisa estava errada. Camila decidiu arriscar com uma mentira:
— Mas nós recebemos o pedido dela, como ela sempre faz…
— Não queremos pizza. Vai embora.
Aquelas duas palavras fizeram toda a ansiedade de Camila sumir, e em seu lugar veio uma poderosíssima indignação.
— Ah, mas eu tive que trazer até aqui! — Exclamou, na sua voz “cliente mal-educado merece entregador mal-educado”. — Não posso voltar com a pizza!
— Problema seu, não pedimos pizza nenhuma! — Ele disse, levantando a voz pela primeira vez.
— Cadê a dona Marlene? Ela sempre pagou direitinho! Você é o que dela?
A pergunta o pegou de surpresa.
— Sou o, hum, o filho dela. — Respondeu, gaguejando.
— Mas você não parece nada com ela. — Camila disse, sem pensar, a boca mais rápida que o cérebro. Em qualquer outra situação, teria se sentido mal de ter falado aquilo, pois tinha plena consciência que filhos nem sempre eram parecidos com os pais e que não é pra ficar apontando as diferenças. Ela mesma tinha a pele um pouco mais escura, o rosto mais afinado e os olhos mais claros que a mãe.
Só que aquele homem era tão diferente da dona Marlene que a boa educação da Camila deu passagem para a sua desconfiança e ela não se importou de ter sido rude.
— É, eu, ah, puxei mais o meu pai. — Ele gaguejou de novo, deixando-a ainda mais cismada.
— É que… seus olhos. Que olhos mais escuros, você tem. — Ela disse, e o homem estranhou. — A dona Marlene tem olhos claros, aquele óculos grossos aumentam eles, dá pra ver bem o olho azul dela.
— Sim, mas… eu puxei meu pai.
— Seu cabelo também, que cabelos mais pretos você tem! A dona Marlene é grisalhinha, mas dá pra ver que ela era loira. — Sem dar tempo dele responder, continuou: — E que nariz mais arredondado e achatado você tem! O nariz da dona Marlene é bem fininho, meio ossudo. Ela mesma, é toda magrinha de rosto, e você…
— Tá me chamando de gordo?
— Não, só que… vocês são bem diferentes. Me conta uma coisa, de onde da Europa que seus pais vieram?
Outra hesitação dele, mas logo sua confusão virou raiva:
— Da França! O que te importa? Vai embora logo!
— Que coisa! — Com a camiseta da dona Marlene durante a última Copa do Mundo nítida na sua memória, Camila urrou: — Que ela veio da Alemanha!
Camila pulou pra frente e, com a ajuda do capacete, acertou uma cabeçada no nariz arredondado e achatado do homem, que caiu para trás, e em seguida chutou-o na canela. Largou a mochila no chão e saiu em disparada pelo corredor gritando:
— Fogo! Alguém! Fogo! Incêndio! — Berrou, lembrando a lição que aprendeu do avô, que ladrão ninguém quer ver, mas todo mundo aprecia um fogaréu.
Estava alcançando o elevador quando sentiu um puxão no cabelo e caiu para trás. O homem pulou em cima dela e a socou no rosto, doendo muito. Camila começou a se debater e chutar, tentando afastá-lo, desesperada, mas ele era bem mais forte, já estava preparando outro soco quando um barulho metálico ecoou no corredor e ele despencou, desacordado.
Era o seu Benjamim com um extintor de incêndio.
— Camila! Você está bem? O que aconteceu?
A única coisa que Camila conseguiu fazer foi chorar nos braços dele.
Meia hora depois, amparada pela mãe enquanto era atendida por um paramédico e conversava com um policial, Camila entendeu o que tinha acontecido. O homem era um encanador que visitou a dona Marlene naquela tarde e, vendo a situação solitária dela e os bens no apartamento, decidiu voltar depois, fingindo ter esquecido uma ferramenta, para prendê-la no armário e roubar o que desse. Inclusive, encontraram a dona Marlene, amarrada e amordaçada, mas logo a libertaram e estavam atendendo-a também.
O surgimento de Camila pegou o assaltante de surpresa, que tentou fingir que não havia ninguém no apartamento, mas logo percebeu que aquela entregadora de pizzas não ia mudar de idéia.
Quanto ao seu Benjamim, a preocupação de Camila com dona Marlene não saía de sua mente e decidiu ir ver se estava tudo bem. Esperando pelo elevador, ouviu o grito de fogo e, desesperado, pegou o extintor de incêndio e desceu as escadas. Ao ver o homem em cima da entregadora, agiu sem pensar e golpeou-o na cabeça.
— Camila! Querida! Obrigada! — Exclamou dona Marlene, indo abraçá-la.
— De nada, dona Marlene! Fico feliz… ai!
A senhora se afastou ao ouvir o gemido da garota.
— Aqui… dói. — Disse Camila, apontando onde havia sido socada.
Enfurecida, a idosa exclamou um palavrão em alemão que, mesmo ninguém mais ali sabendo a língua, todos entenderam o que ela quis dizer. Quando as pessoas querem xingar, xingam na língua natal. Em seguida, dona Marlene perguntou ao policial:
— Onde já se viu, machucar uma menina tão bonita! Já prendeu ele?
— Sim, minha senhora, já abri o boletim e…
— Bom mesmo! — Virou-se para Camila — Obrigada de novo, querida! E você até trouxe minha pizza! Eu nem tinha pedido!
— Ah, a senhora não ia perder a pizza da terça, não é?
— Não mesmo! — Virou-se para o policial — A melhor pizza do bairro! — Virou-se para Sônia, que sorria. — Melhor pizza! E a melhor entregadora! Parabéns, Sônia!
— Obrigada, dona Marlene, ela é mesmo meu orgulho!
Camila queria sumir de vergonha.
A senhora abriu a caixa ali mesmo e, mostrando muito mais destreza que a idade indicava, pegou um pedaço e mordeu, com gosto.
— Dona Marlene, não tá fria? — Perguntou Camila, preocupada.
— Tá de-li-ci-o-sa! Obrigada, minha menina! — A senhora virou a caixa na direção da garota e ofereceu: — Quer um?
O cheiro de chulé era ainda pior frio. Mesmo assim, Camila pegou um pedaço, desajeitada, e mordeu, derrubando atum no chão.
— É a melhor pizza que já comi. — Disse, com toda sinceridade do mundo.
Caso não tenha ficado claro, este conto é Chapeuzinho Vermelho, mas num contexto mais atual. Escrevi ele ano passado, era um exercício de um curso de escrita criativa que participei, era pra reinventar um conto de fadas. Como estávamos no meio da pandemia e todo mundo vivendo de pedir comida por aplicativo, tive esta ideia da Chapeuzinho entregadora de pizza.
Mas, a principal inspiração deste conto é a história real de uma entregadora de pizza que, ao perceber que uma cliente idosa não tinha feito o pedido por alguns dias, foi até a casa dela e a encontrou caída no chão. Ela chamou a emergência e salvou a vida da velhinha. É aquele tipo de história que te faz voltar a ter esperança na humanidade.
Outro detalhe: tentei escrever ele pensando num público infanto-juvenil, por isso a falta de palavrão e afins.
Enfim, obrigado por ter lido o conto! Deixe seu comentário aqui, estou sempre aberto a opiniões para melhorar minha escrita.