A Última Brazuca

— Nossa! — Exclamou Léo para si mesmo, surpreso, ao puxar a placa de plástico do meio dos escombros.

“Uso obrigatório de máscara”, leu, e ao lado havia o desenho de uma pessoa usando uma máscara facial. Riu, lembrando da pandemia de 2020, quando o maior problema que existia era um viruszinho que matou mais de dez milhões de brasileiros. Uma época mais inocente, antes da guerra, das bombas, da radiação, da invasão chinesa, da invasão americana, da invasão russa, da invasão cubana, da segunda invasão americana e do cataclisma climático decorrente da destruição da Amazônia.

Fazia tempo que não pensava nas antigas convenções de contagem de tempo. Calculou com os oito dedos das mãos, devia ser… 2028? Mais ou menos.

“Parece que foi oitenta anos atrás, não oito.”

Contemplou o céu, sob o forte sol da manhã e suspirou, melancólico. Limpou o suor da testa e voltou a escavar a enorme pilha de entulho na entrada do estádio do Pacaembu, em São Paulo. Há quanto tempo estava ali, naquela tarefa ingrata, uns oito dias? Mais ou menos. Golpeava os destroços com sua picareta, se esforçando tanto fisicamente quando psicologicamente, evitando pensar se ia ter comida amanhã, se a água do lago do parque realmente era potável, se a radiação ia lhe dar um tumor, ou pior, um pé crescendo no meio da testa…

Foi quando o muro rachou e Léo teve que se afastar, fugindo da pequena avalanche que causou. Puxou o pedaço que havia quebrado e viu um pequeno túnel, o suficiente para que passasse rastejando. Finalmente ia entrar no estádio!

“A esperança é a última que morre” — lembrou das palavras da falecida vó Esperança.

Foi obrigado a deixar a picareta e a mochila para trás e se arrastou pelo aperto até o outro lado. Saiu numa parte do pórtico ainda sustentada por uma pilastra solitária e viu um vidro com os dizeres “Museu do Futebol”.

— Achei! — Exclamou, seu grito ecoando pelo estádio, e logo se arrependeu, pois percebeu o pilar tremer.

Respirou fundo e cautelosamente entrou no museu. O impacto da explosão havia deixado uma bagunça, inúmeros quadros com momentos marcantes do futebol brasileiro espalhados no chão, camisetas históricas esfarrapadas e televisores destroçados.

“Cadê as bolas? Aqui não é o museu do futebol?” — Se perguntou, olhando em volta. — “Devia ter ido no museu dos testículos.” — Riu sozinho da própria piada, e suspirou, triste, solitário.

Foi para a próxima sala, mais ampla, mas também mais destruída. Uma das paredes e parte do teto havia desabado e diversos itens futebolísticos estavam espalhados pelo chão, tinha até uma estátua de um jogador fazendo cera. Apenas um mostruário ainda se encontrava de pé, com uma bola velha, murcha, bege, cujo padrão das tiras mais parecia com uma bola de vôlei que de futebol.

— “Bola usada no primeiro Campeonato Paulista…” — Leu em voz alta. Olhou ao lado e percebeu que havia outro pedestal, este destruído, mas na placa estava escrito “Bola usada na primeira Taça Brasil.” Acompanhou a parede, achando outras placas e até pedaços de bolas, mas o rastro terminava numa enorme pilha de escombros.

Começou a escavar com as mãos, se machucando, sangrando nos dedos, mas ansioso, determinado, sabia que ela ia estar ali.

E estava.

A brazuca, a bola usada na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, em condições perfeitas, como se fosse nova, sequer estava murcha. Nessa hora, teve certeza que seu plano ia dar certo.

Com reverência, pegou a bola, e um brilho intenso surgiu de baixo dela, do meio dos escombros, assustando-o. Protegendo os olhos, se agachou e percebeu que era uma uma forma tubular de um amarelo escandalosamente fosforescente.

“Uma chuteira?”

Tentou puxá-la, curioso, mas foi surpreendido, a chuteira se levantou sozinha, estava calçando um pé, um pé que estava preso à testa de um homem estranho, com a pele esverdeada, os olhos vazios e um líquido escuro vazando pelos ouvidos e boca.

Um mutante!

Sem esperar, Léo fugiu, a criatura no seu encalço, pra fora do museu, e quando viu o pilar, teve uma idéia. Soltou a bola e a chutou, mirando no pilar, acreditando que conseguiria soterrar seu perseguidor. Mas, como todos os chutes que deu em vida, a bola foi na direção completamente errada, girando toda torta para o gramado. Após um suspiro frustrado, Léo foi buscá-la, com o mutante logo atrás, e ele tinha certeza que ouviu uma risadinha de escárnio vinda do monstro, mas que diabos!

Conseguiu pegar a bola na quarta tentativa e continuou em disparada pelo gramado, procurando alguma saída, até encontrar um portão em perfeitas condições ao lado da rampa da arquibancada, do outro lado do estádio, pronta para ser usada como acesso por qualquer visitante do museu que tivesse se dado ao trabalho de circundar o estádio antes de sair cavando no lugar mais difícil possível.

Escapou para a avenida, um congestionamento de veículos destruídos, um retrato da cidade no momento da explosão. Andou agachado, tentando despistar o mutante e procurando algum carro para fugir. Achou um inteiro o bastante, olhou pela janela e, por sorte, a chave ainda estava lá, assim como os restos mortais do motorista. Mas a maior sorte de todas era o câmbio automático, levando o repetidamente reprovado no exame prático Léo a vibrar, feliz.

Colocou a bola de lado e, usando um pedaço de concreto, quebrou o vidro e abriu a porta. Em seguida, correu atrás da bola, que rolou ladeira abaixo, voltou, entrou no carro, e fugiu, aliviado, atropelando o mutante e as bicicletas abandonadas na calçada.

Após três minutos a mais que o aplicativo de GPS havia prometido, estava de volta ao seu esconderijo, o laboratório de experimentos práticos de física quântica, na faculdade de homeopatia holística.

Ia realizar seu experimento!

Colocou a bola no meio da máquina que passou os últimos… oito meses? Mais ou menos, construindo, e a ligou. As luzes de LED desnecessárias que havia instalado acenderam, fazendo a máquina parecer ainda mais radical, e as pequenas bobinas de Tesla dispararam raios na bola, que começou a tremer, brilhar, levitar!

Olhou para a tela do notebook e sentiu lágrimas se formarem, sua teoria estava correta! A camada de grafeno, estruturada hexagonalmente na superfície da bola, feita para torná-la mais resistente, também protegia-a de distorções do espaço-tempo, criando um objeto que poderia viajar para o passado e, assim, mudar a história! A realidade!

Agora, só precisava programar a data e o local para quando e onde ela devia ir, o lugar e o momento exato para…

Uma enorme coluna de luz atravessou o teto e atingiu a máquina, causando uma explosão, e Léo voou para trás, batendo na parede. Quando abriu os olhos, viu duas pessoas olhando pra ele, não, não eram pessoas, eram baixas e cabeçudas demais, a pele cinza, os olhos grandes, não era possível, mas deviam ser…

— HUMANO, DETECTAMOS UMA ANOMALIA NO TECIDO GRAVITACIONAL.

Alienígenas!

— A INSTABILIDADE DIMENSIONAL DECORRENTE DAS REPETIDAS EXPLOSÕES NUCLEARES DA GUERRA TERRESTRE FRAGILIZOU A REALIDADE.

— NÃO PODEMOS DEIXAR ESTE GLOBO DESPORTIVO ALTERAR O ESPAÇO-TEMPO, AS CONSEQUÊNCIAS SERÃO DESASTROSAS.

— DESISTA DESSE CAMINHO INFRUTÍFERO E NOCIVO.

Ainda atordoado, ainda com dores no corpo, ainda cansado do encontro com o mutante, ainda com sangue nos dedos, Léo se levantou, lentamente. Bateu a poeira das pernas, dos ombros, dos braços, do cabelo. Encheu o peito e encarou os alienígenas, determinado.

— Eu me alistei no primeiro dia. Queria lutar pelo meu país, pela minha família, pelas minhas crenças e, principalmente, por mim mesmo. Queria matar um general inimigo, ou até mesmo o presidente, me tornar um herói. — Sorriu, mas um sorriso triste, arrependido — Levei um tiro na mão na priemeira semana. Voltei pra casa, humilhado, mas ainda vivo, melhor que muitos, que voltavam como uma etiquetinha de identificação e uma bandeira dobrada. E aí, veio a bomba. Perdi tudo. Minha família, amigos, casa, país, minha vida! Foi quando eu entendi. — Soltou um longo suspiro. — Entendi que guerras não fazem heróis, apenas cadáveres. Entendi como eu não valia nada, era só uma estatística para um grupinho de babacas que resolveram brigar por nada e matar toda o planeta. É por isso que eu…

— BLÁBLÁBLÁ, GUERRA NUNCA MUDA, BLÁBLÁBLÁ. TADINHO DE VOCÊ.

— NÃO É PROBLEMA NOSSO SE VOCÊS, PRIMATAS IMBECIS, SÃO INCAPAZES DE ESTABELECER RELAÇÕES EMPÁTICAS ENTRE SI.

— LEVAREMOS O GLOBO DESPORTIVO CONOSCO. — O alienígena pegou a bola do chão. — NÃO VAMOS DEIXAR VOCÊ DESTRUIR A REALIDADE, HUMANO.

Borbulhando de raiva e vergonha, Léo sentiu um peso no estômago, suas tripas puxando-o pra baixo, pro chão, pra ele rastejar feito a minhoca impotente que era, que o mundo o tornou.

Mas ele não era uma minhoca. Ele podia reagir.

Não tinha muito mais a perder, mesmo.

— Humano, não. Brasileiro. E brasileiro não desiste nunca!

Chutou a bola das mãos do alienígena, mas sem muita força, um toquinho com a pontinha do pé, calculado, o suficiente, ajeitou-a com o joelho pra cima, acompanhou o arco dela no ar e pulou para dar uma bicicleta espetacular, digna de replay, que deixaria seu xará Leônidas da Silva orgulhoso, um chute que ativou a reverberação kinemática da estrutura sub-atômica da pelota estabelecida pela sua máquina e um buraco abriu no ar, um portal no espaço-tempo, o ponto por onde a bola viajou rumo ao passado, e Léo torceu, torceu como um brasileiro torce quando quer que uma bola chutada vá na direção certa, que ela fosse para onde e quando precisava que ela fosse.

Fortaleza, Ceará, estádio do Castelão, 2014. Neymar se preparou para receber o passe, vindo do alto, ia matar no peito, quando percebeu um brilho no ar, a bola sumiu? Estava muito cansado, concluiu, pois ali estava a bola, calculou errado a trajetória, correu mais um pouco para recebê-la com os pés, com suas chuteiras amarelas exclusivas, dando um giro em seguida e evitando a entrada nas suas costas do colombiano que o marcava, e continuou a jogar a Copa do Mundo, como se nunca tivesse sofrido uma fratura na coluna, já que nunca a sofreu mesmo.

Foi assim que a história mudou e Neymar pode jogar contra a Alemanha, e o Brasil perdeu só de 3 a 1.

O ressurgimento do fascismo, a pandemia de 2020, a terceira guerra mundial, as bombas atômicas e o cataclisma climático aconteceram, invariavelmente. Assim como a invasão alienígena, mais tarde.

Mas a última brazuca salvou o orgulho do brasileiro.

FIM

Sobre o autor

Vitor Takayanagi

Gosto de escrever histórias de fantasia, ficção científica e qualquer outro gênero exigido pelo concurso de contos que eu estiver participando no momento. Nasci e cresci em São Paulo. Não gosto de falar sobre mim mesmo, fico me sentindo um narcisista metido, mas preciso vender o meu trabalho, então aqui estou, escrevendo uma miniautobiografia tentando equilibrar minhas qualificações com minhas neuroses, o que também pode ser visto como uma estratégia para conseguir conquistar sua simpatia, a mesma lógica que incentiva empresas a compartilhar memes em redes sociais, é um jeito delas parecerem pessoas e ganharem sua amizade, num relacionamento parassocial capitalista distópico. Gosto mais de Toddy que Nescau.

One thought on “A Última Brazuca

  1. Mais outro conto ligado à pandemia (eventualmente esse tome acaba, prometo), neste caso para um concurso com o tema de “pós 3ª Guerra Mundial”. Somei a guerra à pandemia, acrescentei mais alguns desastres e criei este apocalipse vivido pelo Léo. Espero que tenham gostado.

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